Por Dr. Pedro Deja / Neurocirurgião CRMESP 89.052

Muito antes de existir o que poderíamos chamar de história, já existiam o que se convencionou denominar como seres humanos. Animais bastante similares aos humanos modernos surgiram por volta de 2,5 milhões de anos atrás. Mas, por incontáveis gerações, eles não se destacaram da miríade de outros organismos com os quais partilhavam seu habitat.
Yuval Noah Harari, o autor de "Sapiens - Uma Breve História da Humanidade", afirma que esses humanos arcaicos amavam, brincavam, formavam laços fortes de amizade e competiam por status e poder - mas os chimpanzés, os babuínos e os elefantes também. Os humanos pré-históricos eram animais insignificantes, cujo impacto sobre o ambiente não era maior que o de gorilas, vaga-lumes e águas-vivas.
O que fez com que nós alcançássemos do meio da cadeia alimentar diretamente para o topo em um intervalo curtíssimo de tempo? Poderia ter sido, por exemplo, o tamanho avantajado do nosso cérebro, algumas vezes maior do que o das demais espécies. Isso trouxe inúmeras vatagens incríveis. Mas também algumas desvantagens. Nós tínhamos que passar mais tempo em busca de comida, pois embora o cérebro fosse equivalente a 2 ou 3% do peso corporal, ele consumia 25% da energia do corpo quando este estava em repouso. Um verdadeiro sugador contumaz de energia. Para efeito de comparação, o cérebro de outros primatas requer apenas 8% de energia em repouso. Em segundo lugar, nossos músulos atrofiam. Justamente por toda essa energia estar sendo canalizada para outro lugar. Sim, nós desviamos uma enormidade de energia dos bíceps para os neurônios.
Sobre este nosso incrível cérebro, Harari comenta: "por mais de 2 milhões de anos, as redes neurais dos humanos continuaram se expandindo, mas com exceção de algumas facas de sílex e varetas pontiagudas, os humanos tiraram muito pouco proveito disso". Então, podemos conluir que não foi o fato de termos cérebros incrivelmente avantajados.
Será que teria sido o fato de andarmos eretos apoiados em duas pernas? Tratava-se de um traço humano singular que certamente nos conferiu algumas vantagens, como de termos uma melhor amplitude de visão das planícies, além de liberar os braços para outros propósitos, como produzir ferramentas e armas.
Ou será que pode ter sido a importante conquista do domínio do fogo que nos garantiu o controle de uma força obediente e limitada, fonte de luz e calor, que ainda poderia ser uma arma letal contra outros animais ferozes?
Seria bastante plausível imaginar que tudo isso poderia ter nos tornado o animal mais poderoso da Terra. Mas não o fez. Ao menos não isoladamente. Na verdade, nós usufruímos de todas essas vantagens por 2 milhões de anos e seguimos sendo criaturas fracas e marginais na natureza.
Como conseguimos nos instalar tão rapidamente em tantos habitats distantes e tão diversos? Como condenamos todas as outras espécies humanas à extinção e ao esquecimento? O próprio Harari nos esclarece: "a resposta mais provável é propriamente aquilo que torna o debate possível. O homo sapiens conquistou o mundo, acima de tudo, graças à sua linguagem única. O surgimento de novas formas de pensar e se comunicar, entre 70 mil anos atrás a 30 mil anos atrás, constituiu a REVOLUÇÃO COGNITIVA. O que a causou? Não sabemos ao erto. A teoria mais aceita afirma que mutações genéticas acidentais mudaram as conexões internas do cérebro dos sapiens, possibilitando que pensassem de uma maneira sem precedentes e se comunicassem usando um tipo de linguagem totalmente novo. Poderíamos chamá-las de mutações da árvore do conhecimento".
Mas o que há de tão especial em nossa linguagem? Nós podemos consumir, armazenar e comunicar uma quantidade extraordinária de informação sobre o mundo a nossa volta.
"Colorless green ideas sleep furiously" ("ideias incolores verder dormem furiosamente"). Avram Noam Chomsky
A famosa frase de Chomsky representa a tese de que qualquer falante reconhece frases mesmo que sem sentido, o que seria uma prova da qualidade inata da linguagem. Em vez de procurar as particularidades de cada língua, ele cogitou que, sendo manifestações de uma condição inata, as línguas devem guardar característicasuniversais, marcas de sua origem comum no cérebro humano. Para descrever o processo cerebral que dava origem às frases, postulou a tese de que a linguagem humana ocorre em dois níveis: uma estrutura profunda, na qual o raciocínio ocorreria sem o uso de palavras, e o uso superficial, que são as frases que dizemos, pensamos e escrevemos. Entre os dois níveis haveria um conjunto de transformações.
Chomsky tem coceiras na alma quando ouve falar de adestramento, dada sua crença na criatividade humana. Em sua concepção, a linguagem é uma capacidade humana natural, inscrita no DNA. Se uma criança for criada entre lobos, ela não desenvolverá a linguagem. Mas, se voltar ao conteúdo humano, tudo volta ao que deveria ser e ela aprende a falar. Chomsky estava mudando de localização do objeto de estudo da linguística: enquanto para os estruturalistas a língua era algo externo ao homem, para ele o foco era a capacidade inata da linguagem, porque ali, dentro de todos e de cada um, está um tesouro (a capacidade de entender esta frase que você está lendo agora, frase que nunca tinha lido antes, mas que faz todo o sentido.
Mas não foi somente isso que nos tornou tão singular e superior. A característica verdadeiramente única da nossa linguagem não é a sua versatilidade ou capacidade de transmitir infirmações tão detalhadas.
É, segundo Harari, a capacidade de criar e transmitir informações sobre coisas que não existem. Apenas os sapiens podem falar sobre coisas que nunca viram, tocaram ou cheiraram. E assim criar realidades paralelas. "Lendas, mitos, deuses e religiões apareceram pela primeira vez com a Revolução Cognitiva. Antes disso, muitas espécies animais e humanas foram capazes de dizer: "Cuidado! Um leão!". Graças à Revolução Cognitiva, o homo sapiens adquiriu a capacidade de dizer: "O leão é o espírito guardião da nossa tribo". O autor afirma que a capacidade de falar sobre ficções - que também são conhecidos no meio acadêmico como "construtos sociais" ou "realidades imaginadas" - é a característica mais singular da linguagem do sapiens. E diz que "a ficção nos permitiu não só imaginar coisas como também fazer isso coletivamente.
Podemos tecer mitos partilhados. Tais mitos dão aos sapiens a apacidade sem precedentes de cooperar de modo versátil em grande número. Foi o surgimento da ficção que possibilitou que um grande número de estranhos pudesse cooperar de maneira eficaz por acreditar nos mesmos mitos. Toda a cooperação humana em grande escala - seja um Estado moderno, uma igreja medieval, uma cidade antiga ou uma tribo arcaica - se baseia em mitos partilhados que só existem na imaginação coletiva das pessoas.
Uma realidade imaginada seria algo em que todo mundo acredita e, enquanto essa crença partilhada persiste, ela exerce influência no mundo e em todas as pessoas que compartilham do mesmo construto social.
Há quase 20 anos imaginamos uma realidade compartilhada que pudesse transformar a vida das pessoas.